O ano é 2020. O mês, janeiro. A cada dia se tornam mais intensas as notícias do tal vírus que eclodiu uma epidemia na China e acabaria levando a milhares de mortos no país.
Acompanhando as primeiras notícias do que viria a se tornar a pandemia de coronavírus, não pude deixar de me lembrar do experimento da doença asiática, conduzido por Amos Tversky e Daniel Kahneman há uns 40 anos atrás. Esse experimento é uma das mais conhecidas demonstrações do viés de framing, ou enquadramento, em tomada de decisão.
Em uma frase curta, esse viés é o seguinte: dependendo da forma como uma mesma informação ou um mesmo problema é apresentado, podemos tomar decisões diferentes. Sim, estamos falando sobre uma pessoa obter resultados diferentes — ou exibir “mudanças de preferência”, no economês — para uma mesmíssima coisa, a depender da moldura com que ela se apresente.
Sabe aquele papo de que a forma como se fala é quase tão importante quanto a mensagem em si? Tem a ver com isso.
O certo ou o duvidoso? Depende
Kahneman e Tversky identificaram o viés de enquadramento em diversos experimentos com problemas de decisão apresentados a alunos das universidades de Stanford e British Columbia nos anos 1980. O problema da doença asiática é apenas um deles, e vou resumir aqui pra quem não conhece.
Ao primeiro grupo, composto por 152 alunos, os pesquisadores apresentaram o problema da seguinte forma:
Imagine que os EUA estão se preparando para o surto de uma rara doença asiática, que espera-se que mate 600 pessoas. Dois programas foram propostos para combater a doença. Considere que as estimativas científicas exatas das consequências dos programas são as seguintes: se o programa A for adotado, 200 pessoas serão salvas; se o programa B for adotado, há ⅓ de probabilidade de que 600 pessoas sejam salvas, e ⅔ de probabilidade de que ninguém seja salvo. Qual dos dois programas você prefere?
Quando o problema foi apresentado desta maneira, 72% dos respondentes decidiram pelo programa A, a alternativa com o resultado certo.
Para outro grupo de 155 pessoas, o problema da doença asiática foi enquadrado para evidenciar as mortes, e não das vidas salvas com os programas:
Se o programa C for adotado, 400 pessoas morrerão; se o programa D for adotado, há ⅔ de probabilidade de que 600 pessoas morram e ⅓ de probabilidade de que ninguém morra. Qual dos dois programas você prefere?
Nesse caso, 78% dos respondentes escolheram o programa D, a alternativa incerta, demonstrando uma reversão de preferência atrelada ao framing do problema.
Como Kahneman e Tversky explicam, “as preferências nos problemas 1 e 2 ilustram um padrão comum: escolhas envolvendo ganhos geralmente são avessas ao risco e escolhas envolvendo perdas preferem o risco. No entanto, é fácil ver que os dois problemas são efetivamente idênticos.” Pra quem quiser ler na íntegra um dos mais clássicos papers dessa dupla incrível, tá na mão: The Framing of Decisions and the Psychology of Choice.
Vários estudos posteriores repetiram essa conclusão de que buscamos mais risco em situações incertas e mais segurança em situações garantidas. Inclusive um — pra mim particularmente assustador! — envolvendo a escolha do tipo de terapia de pacientes com câncer de pulmão a depender do enquadramento. Assunto pra um próximo artigo.
Meus amigos e a enquete da doença asiática
Ainda impressionada pela coincidência do tema do experimento da doença asiática com o momento atual (embora infelizmente o número de vítimas fatais já seja astronomicamente maior na vida real do que na situação hipotética), decidi fazer uma adaptação do problema e aproveitar a saliência do assunto pra checar as variações nas preferências de alguns dos meus amigos, familiares e conhecidos que me seguem no Instagram.
Abaixo, as duas sequências de stories que exibi para dois pequenos grupos excludentes de 55 pessoas cada, usando os recursos de amigos próximos e enquete do Instagram. Um grupo viu o framing positivo (ênfase nas vidas salvas), o outro o negativo (ênfase nas mortes).
Framing positivo:
Framing negativo:
Tomei o cuidado de equalizar a composição dos grupos com base em sexo, faixa de idade e cidade onde mora. Pelo menos posso dizer que fiz um exercício de amostragem, sabendo que nada poderia reduzir o grande viés que é a relação que essas pessoas têm comigo.
A taxa de resposta girou em torno de 50%, e os resultados não acompanharam o resultado do experimento original (ver no penúltimo story das sequências acima).
Estou começando a estudar um pouco de estatística agora, mas chutaria que possivelmente foi por dois motivos principais: o tamanho da amostra muito pequeno, e o tal do relacionamento comigo que provavelmente incentivou as pessoas a pensarem mais que o normal antes de responder.
A ideia era que elas não pensassem tanto assim, afinal se a gente racionalizar pra caramba, o que normalmente não fazemos, ficamos muito menos sujeitos a vieses cognitivos como o framing! Olha, foi cada textão justificando a escolha que recebi no direct do Instagram…
A impressão que tive foi que meus amigos racionalizaram TANTO que quase me senti mal por ter colocado eles nesse difícil dilema hipotético. Ok, não é pra tanto! Mas é claro que a saliência desse tema, dado o momento atual, também pesou bastante na atenção que eles deram à questão.